Exemplos positivos inspiram meninas a buscarem a carreira científica

11/02/2021 08:58

“Os sistemas educacionais e as escolas desempenham um papel central em determinar o interesse das meninas em disciplinas de STEM (sigla para Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática), bem como em oferecer oportunidades iguais para acessarem e se beneficiarem de uma educação em STEM de qualidade.”

O trecho em destaque em relatório da Unesco traduz, na prática, a importância do efeito borboleta para a carreira das meninas e mulheres nas ciências. Quando a escola bate as asas na construção das oportunidades, forma cientistas capazes de intervir na realidade. Quando a universidade faz o mesmo, o efeito tende a ser a inclusão e a diversidade nos diferentes espaços profissionais.

Na UFSC, há, atualmente, 870 alunas com bolsas de iniciação científica, o que representa 55,05% do total. As mais jovens nasceram no ano de 2002 e ainda não completaram 20 anos de idade. Pode parecer um ingresso precoce, mas representa, na verdade, uma quebra de paradigma – segundo o mesmo documento divulgado pela entidade internacional,  o gap entre mulheres e homens na carreira é ocasionado por “normas sociais, culturais e de gênero, que influenciam a forma como meninas e meninos são criados, como aprendem e como interagem com seus pais, com sua família, amigos, docentes e com a comunidade como um todo”. 

Marília Reginato Barros faz doutorado em Química, após começar a carreira na iniciação científica e receber prêmio pelo seu trabalho (Foto: João Paulo Winiarski)

A pesquisadora Marília Reginato de Barros começou a atuar com iniciação científica já mirando a carreira acadêmica, mas ter conhecido mulheres que estavam nesse universo foi um estímulo a mais. Facilitar o contato com figuras exemplares femininas e fornecer incentivos (bolsas de estudo e pesquisa) nas áreas em que meninas e mulheres são sub-representadas de forma significativa são dois dos inúmeros pontos indicados pela ONU como formas de criar “mudanças sustentáveis” nestes padrões.

Para ela, foi muito importante ter o suporte e o exemplo de mulheres na academia. “O fato de eu ter 80% de professores homens, mas 20% de professoras mulheres comprometidas com observações sobre como esse problema de gênero se dá foi muito importante para que eu chegasse até aqui. É uma trajetória baseada em muitas referências”, argumenta.

Da iniciação científica ao doutorado

A jornada acadêmica de Marília começou de forma semelhante a de muitas meninas que se encantam pela ciência: a partir da curiosidade. Quando entrou na faculdade de Química, ainda não tinha certeza de qual seria o seu caminho, mas o contato com as professoras Rosely Peralta e Hérica Magosso já no primeiro ano do bacharelado ajudou a norteá-la.

A entrega da professora Hérica em sala de aula a influenciou a mirar a docência como sua escolha de carreira. “Foi muito importante para mim ter esses exemplos, essas referências para o meu trabalho. Foi uma trajetória muito baseada nessas referências”, conta. A passagem para a licenciatura e o contato, como bolsista do PIBID, com o dia a dia de escolas públicas, também foram fundamentais. “Foi uma ótima decisão para a minha carreira porque me ampliou muito a percepção sobre o que é ser atuante dentro de uma universidade”.

Mas foi a partir da experiência na iniciação científica, também com a professora Hérica, que muitas coisas mudaram na vida dela. “Tive contato com um trabalho que condizia com o que acredito em ciência, uma ciência com retorno social importante”, conta. O prêmio no SIC deu a oportunidade de ir à reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), onde além de apresentar suas descobertas sobre novos adsorventes a base de matrizes de sílica, participou de um minicurso sobre mulheres na ciência e recebeu informações densas e profundas não só sobre gênero, mas também sobre as interseccionalidades e subjetividades que envolvem o tema.

“Tudo isso foi muito importante para mim, mudou muito a minha forma de ver e de me colocar também no sistema acadêmico como mulher”, recorda. Paralelamente, a pesquisa também foi tomando seu rumo: o projeto premiado acabou se tornando a dissertação de mestrado de Marília, o que a levou, depois, ao doutorado.

Com a professora Rosely, em diversas oportunidades, aprendeu muito além de uma visão de ciência: foi tocada pelos seus ensinamentos relacionados à ética e à vida. Com a atual orientadora, Cristiane, está em busca de uma ciência que impacte diretamente a sociedade desenvolvendo sensores eletroquímicos para tentar detectar os agrotóxicos em meio aquoso. “Não é fácil ser mulher dentro desse sistema. Tive referências de mulheres, professoras e pesquisadoras que me norteiam. Não somente pegaram na minha mão e disseram vem, mas disseram ‘vem que que a gente vai desenvolver isso e que a gente tá juntas’. Sou extremamente grata por isso”.

Exemplo de casa

Hoje, a professora do Programa de Pós-Graduação em Química Rosely Peralta atua com  moléculas inorgânicas capazes de mimetizar o que tem na natureza, mas não foi assim que tudo começou. Antes de ingressar na UFSC como professora universitária, aos 39 anos, em 2010, ela experimentou a Engenharia Química e chegou a fazer o mestrado em Engenharia Mecânica. Também lecionou para o ensino médio, o que a fez reencontrar a curiosidade e o interesse pela área que ela considera a sua “cachaça”. “Para mim não é um trabalho, é um lazer”, brinca.

O exemplo veio de casa, tanto dos pais, que colocavam a educação em primeiro lugar, sem negociação, quanto das duas irmãs, também professoras universitárias. O marido também foi um grande incentivador, quando a estimulou a voltar para a sala de aula e fazer uma especialização voltada para professores de ensino médio.  “Foi após essa especialização que eu vi que tinha que voltar para a pesquisa”.

Em 2001, voltou à pesquisa e, segundo ela mesmo expressa, “abraçou de corpo e alma a química e a pesquisa em química”. O apoio das irmãs, Rosane e Regina, também foi essencial: foi com elas que Rosely se aconselhou antes de pedir demissão para fazer o doutorado e reiniciar a trajetória acadêmica. “Depois, quando terminei o doutorado, em 2005, não havia muito concurso público para universidade federal. Então fiz pós doutorados no meu departamento e na Bioquímica para me manter na pesquisa”. Foram cinco anos de pós-doc, algumas vezes sem bolsa, antes de se tornar professora.

A maturidade foi positiva para a construção da carreira. A professora considera que estava menos suscetível a constrangimentos relacionados ao gênero. Muito comunicativa e propositiva, antecipava discursos anti-machistas para que eles sequer passassem por perto. “Mas já presenciei e defendi colegas de observações desse cunho. Já vi colegas serem diminuídas, sem muito espaço”, sinaliza.

Por isso, em sua visão, um desafio central relacionado às carreiras de mulheres na ciência é mudar a mentalidade de quem está em cargo de chefia. “Temos que quebrar o paradigma de que é assim e vai continuar assim. É necessário muito diálogo, em todos os espaços, mesmo em sala de aula”. A professora acredita que é possível lutar contra o que está errado observando. “Tenho a docência como algo muito importante na minha vida. Docente tem de ser um espelho. A tua postura diz muito do que tu és. Se você tem uma postura de combate ao que está errado, os alunos percebem isso e começam a refletir a respeito”, considera.

Trabalho conjunto

A curiosidade também foi o que levou Hérica Aparecida Magosso a buscar a Química como opção de carreira. Mas foi o desejo de contribuir com a sociedade, desenvolvendo materiais e desvendando temáticas que auxiliassem na resolução de problemas que a direcionou para o mundo da pesquisa e da ciência.

A professora orientou o trabalho de Marília premiado na SIC em 2016 e teve uma importância fundamental para que a então estudante se transformasse em uma jovem cientista. Foi ela quem deu a primeira oportunidade de iniciação científica à pesquisadora, buscando desenvolver materiais que podem ser aplicados para a descontaminação de águas – atividade com impacto direto nas questões ambientais.

Hoje, Hérica divide seu trabalho com a maternidade. Mãe de quatro filhos pequenos, Miguel, Pedro, Maria Antônia e Ana Rosa, ela diverge da ideia de que se tornar mãe é, de alguma forma, sinalizar para uma mudança na carreira. “A maternidade serve para impulsionar minha carreira quando eu percebo que posso fazer alguma coisa que ajude a deixar o mundo melhor para os meus filhos”, fala.

Quanto ao seu papel em sala de aula, ela acredita que o mais importante é reforçar, entre os acadêmicos, a ideia de que é preciso buscar a satisfação na vida profissional e também na vida integral. Dedicação e esforço são chaves para isso, além do trabalho coletivo, colaborativo e sem distinção entre gêneros. “Quando a gente trabalha em conjunto, todo mundo sai ganhando”, acredita.

Divulgação como ferramenta para a diversidade

A carreira científica da professora do Programa de Pós-Graduação em Química Cristiane Luisa Jost começou de forma precoce, no clube de ciências da escola, no terceiro ano do ensino fundamental. Além do pai, um grande incentivador de uma curiosidade que já estava em sua essência, a professora Íris também foi responsável pelo primeiro passo.

No ensino médio, o interesse continuou: ajudava a cuidar do laboratório da escola e já no primeiro ano começou a se interessar por Farmácia Industrial, mas acabou optando pela faculdade de Química Industrial. “Tive bastante dificuldade no primeiro semestre, pois achei o curso muito difícil. Foi meu pai que me estimulou a terminar.  No segundo semestre comecei a gostar mais e entrei num laboratório de onde só saí quando terminei o doutorado.  Me apaixonei pela química analítica”, resume.

Cristiane já foi uma exceção desde o início da sua história como cientista. Segundo o relatório da ONU, “as diferenças de gênero na participação na educação em ciências, tecnologia, engenharia e matemática em detrimento das meninas já são visíveis na educação infantil, e se tornam ainda mais visíveis nos níveis de ensino mais altos”. Isso tem gerado baixos índices de participação das jovens nessas áreas, do início ao fim da idade escolar.

Pois foi justamente essa realidade que fez a professora se engajar em um projeto de extensão que busca estimular meninas e mulheres nas carreiras científicas. O projeto “Ciência feita por mulheres para todos e por todos”   pretende desenvolver e estimular a troca de conhecimentos e experiências sobre o assunto, levando palestras e debates a diferentes locais de formação do conhecimento. No lattes de Cristiane, além de toda a sua produção científica, uma frase chama a atenção: “Pela visibilidade e representatividade das meninas e mulheres na Ciência”.

No laboratório, a professora atua no desenvolvimento de métodos para detectar diversos tipos de substâncias nas águas. Lidera o Laboratório de Plataformas Eletroquímicas (Ampere), criado em 2020. Sua projeção como cientista a leva a ter segurança para dizer que nunca sentiu dificuldades na academia por ser mulher, mas que o impacto veio quando chegou ao primeiro cargo de natureza hierárquica na universidade: a coordenação do curso. “Foi ali que eu percebi que poucas mulheres ocupam certos cargos na universidade. Participei de  reuniões com 15 homens e só eu de mulher. Me perguntei: ‘será que eu devia estar aqui?’. Mas depois pensei: ‘onde estão as outras mulheres que não estão aqui?’”.

Esse despertar a levou ao engajamento na causa. Cristiane se questiona, por exemplo, porque há tantas meninas ingressando na Química e tão poucas ocupando posição de liderança e destaque. Ou porque há evasão entre aquelas que ingressam e aquelas que concluem a faculdade. “É preciso lutar pela permanência dessas meninas até o fim, entender por que elas não vão para a pós-graduação. Daí a relevância de projetos que divulguem isso”, reflete.

Na área em que atua, Cristiane vê muitos exemplos de mulheres fortes. Neste mês, por exemplo, serão seis representantes do laboratório em um evento especial só para mulheres que atuam na eletromagnética, para mostrar os trabalhos sendo desenvolvidos e atrair outras meninas para a carreira.

Mas, longe de querer um espaço só para elas, é a busca da inclusão para a diversidade que a motiva dentro e fora da sala de aula e dos espaços de pesquisa. Para a pesquisadora, ambientes diversos são mais produtivos e ricos e conseguem alcançar melhores resultados. “A questão não é promover uma competição com os homens, mas promover a diversidade, como já vem sendo feito em alguns lugares e mesmo em editais de empresas privadas”, pondera.

 

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Amanda Miranda/Agecom/UFSC

Tags: Meninas e Mulheres na Ciência