Com menos destaque nos altos postos da ciência, meninas e mulheres buscam reverter estatísticas

11/02/2021 22:53

Efeito tesoura é o termo utilizado para ilustrar como as mulheres vão perdendo espaço nas estatísticas relacionadas às ciências, com o passar dos anos. É como se elas fossem, pouco a pouco, expulsas da carreira, sem conseguir chegar ao topo. Também chamada de “teto de vidro”, a metáfora ilustra que, por mais que vejam e queiram chegar às posições mais altas, meninas e mulheres enfrentam barreiras inevitáveis pelo caminho.

Professora Miriam Pillar Grossi

Uma das questões mais ilustrativas desse assunto diz respeito à maternidade e também ao casamento. A professora Miriam Grossi, antropóloga e pesquisadora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, diz que a maternidade precisa ser reconhecida como um fator de influência na carreira. “E isso é parte da vida social, por isso precisamos criar condições para o bem estar das pesquisadoras mães, dar condições de apoio”.

Neste aspecto, até gestos mais sutis, como o agendamento de reuniões, pode ter influência na rotina institucional das mulheres, quando este horário concorre com o tempo de buscar os filhos na escola ou da execução de alguma tarefa doméstica. “O casamento também tem essa influência e é uma questão que afeta boa parte das mulheres. É o tempo para o cuidado da casa, supermercado, comprar, limpar – há uma diferença radical do volume de horas que uma mulher gasta e que um homem gasta nesta rotina”, exemplifica.

De acordo com artigo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as mulheres são cerca de 54% dos estudantes de doutorado no Brasil, 10% a mais do que nas últimas décadas. Apesar disso, elas representam apenas 24% entre os bolsistas de produtividade do país – bolsas concedidas pelo CNPq a pesquisadores com índices de produtividade elevados. Na Academia Brasileira de Ciências, são apenas 14%. Na UFSC, elas são  54,2% entre as alunas na pós-graduação (Mestrado e Doutorado Acadêmico e Profissional) e apenas 35% entre as bolsistas de produtividade.

A professora Miriam conhece bem essa realidade. Ela, que é bolsista de produtividade 1B, com alto índice de produtividade, também já foi presidente de entidades científicas e afirma que são posições nas quais as mulheres enfrentam o machismo de forma emblemática. “Tive que romper muitas barreiras quando fui para a Capes e para o CNPq, quando fui presidente de associações. Estive em vários lugares que não foi fácil de me candidatar, enfrentar eleição e me relacionar com pessoas importantes em que já de cara poderia ser desqualificada como interlocutora. Mas sempre soube que era muito importante estar ali, porque era um exemplo”, comenta. Ela também destaca a relevância de se ter mulheres ocupando os mais altos postos na gestão universitária.

Os exemplos são construídos no dia a dia institucional. A professora Rosely Peralta, por exemplo, recorda de um detalhe do concurso no qual foi selecionada como docente efetiva da Universidade: só haviam candidatas mulheres. Hoje, no entanto, ela percebe isso como uma exceção. “Se fizermos um paralelo, tem mais meninas fazendo graduação, mestrado e doutorado. Mas como professora isso não se reflete. Sempre me pergunto o porquê de isso acontecer. É uma coisa tão estrutural, tão antiga que as pessoas não se dão conta de que isso acontece. Se temos 100 mulheres com doutorado, por que essas 100 não são inseridas na docência?”, questiona.

Para a professora Cristiane Jost, é importante levar esse assunto para dentro dos laboratórios, para tentar garantir a permanência dessas mulheres e garantir que persistam e continuem tendo interesse em atuar na área. Entre medidas que ela cita como importantes para a busca de equidade, estão o lançamento de editais para mulheres e editais que também prevejam o tempo em que elas precisam pausar a carreira por conta da maternidade. “E é preciso trabalhar com divulgação, para que as mulheres saibam que podem ocupar cargos de liderança e de chefia. Quanto mais houver esse interesse, mais chegarão lá e talvez passem a participar dessas decisões importantes para a garantia da diversidade”.

Maioria na Saúde, baixa representação nas Engenharias

Professora Alacoque Lorenzini Erdmann

Alacoque Lorenzini Erdmann já viveu de tudo um pouco na carreira científica: foi reitora, vice-reitora, coordenadora de área na Capes, além de ter recebido diversos prêmios e participado de diferentes comissões ao longo da sua trajetória. Como cientista, faz parte dos 24% de mulheres a ter bolsa de produtividade no CNPq no país – mais do que isso, ela está no posto mais almejado entre os cientistas atuantes no Brasil – faz parte do grupo 1A e é uma das 5 pesquisadoras PQ Senior na UFSC, dividindo com a professora Ilse Scherer-Warren a representação feminina no grupo.

“A mulheres cientistas vêm liderando equipes de projetos conquistando domínios singulares pelos seus potenciais e natureza feminina. Assim como o conhecimento é um bem público, o direito de produzi-lo e de usufruí-lo é de todos e todas”, pontua a professora, que atua como cientista no campo da Saúde, na área de Enfermagem. Para a professora, datas como o dia internacional das meninas e mulheres nas ciências acabam representando uma oportunidade a mais para garantir visibilidade e reconhecimento ao papel das mulheres.

Atualmente, Alacoque trabalha, entre outras coisas, na pesquisa Avaliação do cuidado de enfermagem a pacientes com COVID-19 em hospitais universitários brasileiros, com uma perspectiva dos profissionais e pacientes.

“Os instrumentos desenvolvidos e utilizados para a busca de novas soluções científicas são de domínio tanto dos homens como das mulheres, e como tal, todos podemos imprimir nossos modos de produzir conhecimentos absolutos e outros relativos, a depender do olhar, leitura e domínio que tiver sobre o objeto investigado”, destaca a professora, que rejeita a existência de um padrão único para lidar com o cotidiano da ciência. “Vivemos a era do pluralismo e diversidade do modo de ver a realidade e de conviver com ela”, destaca.

Mesmo sendo uma exceção nas estatísticas, ela acredita que o crescimento expressivo de mulheres na formação universitária é um passo importante para se reverter os números, que trazem ainda outro desafio – Alacoque compõe o grupo dos 60% de cientistas mulheres, no Brasil, que atuam na área das ciências da saúde e da vida, mas, nas ciências da computação e matemática elas são menos de 25%.

A UFSC tende a seguir, em seus números de pós-graduação, padrões mundialmente repercutidos a respeito da configuração dos gêneros por área nas ciências. No ano de 2020, por exemplo, foi o Centro de Ciências da Saúde (CCS), área associada ao cuidado, o responsável pela maior estatística de pesquisadoras mulheres a concluírem seus estudos – 87,1% das defesas de teses e dissertações foram de mulheres.

Por outro lado, as engenharias, representadas pelo Centro de Ciências Tecnológicas (CTC), tiveram 38,9% das teses e dissertações concluídas no ano assinadas por mulheres. O número de orientações também é mais baixo entre as mulheres nessa área: 25,1%.

Os números também serão percebidos na graduação. A pesquisadora do Laboratório de Formação e Orientação Profissional da UFSC, Rayza Alexandra Aleixo Franciscoinvestigou essa temática em sua dissertação de mestrado e foi aos cursos de engenharia com o menor número de ingressantes mulheres – Engenharia Mecânica e de Controle e Automação – para ouvir as acadêmicas sobre o assunto.

De um modo geral, identificou que as mulheres que responderam à pesquisa não entendiam o gênero como impeditivo de acesso ao curso.Uma das possíveis razões, segundo ela, pode ser o fator classe: a maioria das estudantes vinham da classe média e média alta, com histórico de sucesso escolar muito grande. “Poucas acessaram a universidade via políticas afirmativas”, comenta.

A questão das interseccionalidades também se faz presente nas preocupações da professora Miriam Grossi. “Mesmo entre as mulheres, as condições de acesso ao campo científico são desiguais. Há muitos marcadores sociais de diferença entre as mulheres, por isso, na criação de políticas públicas, é preciso considerar as mulheres com deficiência, negras, indígenas, as mulheres das camadas populares e as profundas desigualdades sociais que nos cercam. Para elas, chegar lá é muito diferente”, pontua. Na UFSC, por exemplo, mais de 75% das mulheres matriculadas no doutorado são brancas.

Ainda com relação às carreiras nas engenharias, a pesquisa desenvolvida por Rayza descobriu que, mesmo não sendo um fator predominante para o ingresso na faculdade, o gênero se destacava como um dificultador de permanência entre 40% das mulheres. Além disso, cerca de 76% das estudantes ouvidas afirmaram que percebiam que as relações de gênero eram também dificultadoras para a inserção no mercado de trabalho.

A psicóloga vê os estereótipos de gênero como uma das explicações para a baixa inserção das mulheres nas carreiras na Engenharia. “Há questões sociais mais abrangentes com relação à própria edificação da ciência. Mas nas teorias da carreira, por exemplo, se discute por que tão poucas meninas escolhem e tão poucas mulheres permanecem nessas posições. Penso que os discursos normativos de gênero são uma ameaça pois confirmam esses estereótipos”, reflete.

De acordo com ela, a ideia de talento inato, genialidade e brilhantismo em que se formatam modelos masculinos, a antecipação de conflitos família, maternidade e trabalho e até a discriminação, o assédio e a escassez de recursos de apoio podem influenciar e agir como um freio entre meninas que têm interesse na carreira científica. Além disso, um fator que merece atenção é o número baixo de mulheres que participam da formação dessas jovens, ou seja, de professoras que ocupam posições nestas áreas. “Como elas vão achar que serão engenheiras se dentro da própria universidade essas áreas não são significativamente representadas por mulheres?”, questiona.

Enfrentar e debater

Quando chegou à superintendência de projetos da Pró-Reitoria de Pesquisa da UFSC,há um ano, a professora Maique Weber Biavatti, do Departamento de Ciências Farmacêuticas, fez questão de ativar um lembrete: além de assumir todas as funções que o cargo exigia e acumulá-las com a vida de cientista, ainda precisava se ocupar das tarefas domésticas.

Professora Maique Weber Biavatti

A fala ocorreu junto com a apresentação do seu memorial e das suas credenciais para o posto, mas a brincadeira tinha também muita seriedade – o 11 de fevereiro de 2020 não havia sido celebrado institucionalmente e era preciso tocar o dedo na ferida. As ações planejadas a partir daí começam a ter consequências: além de uma disciplina sobre mulheres nas ciências oferecida para os cursos de graduação, a instituição também terá um evento e uma premiação às mulheres que se destacaram. “As diferenças não são uma questão da UFSC, são uma questão cultural na qual estamos inseridos”, comenta.

Maique é uma das 470 mulheres a ocuparem cargos de liderança na UFSC, uma minoria com relação aos 640 homens. Na coordenação dos programas de pós-graduação, são apenas 41%. O efeito tesoura também é reconhecido, por ela, como uma causa dificultadora da ascensão feminina. “É preciso compreender que isso existe e acolher a carga feminina e o papel feminino que é desempenhado na sociedade”, diz.

A professora tem vivenciado essas diferenças quase diariamente. Ao conversar com pesquisadoras mulheres, por exemplo, não é raro ouvir o barulho de crianças ou de eletrodomésticos, o que indica que as tarefas de casa não param. Com os homens, por outro lado, isso não ocorre. “As mulheres, certamente, trabalham muito mais horas do que os homens porque acabam acumulando o grosso do serviço doméstico”, aponta. A maternidade também tem uma influência determinante. “Se uma menina da pós-graduação engravida, mesmo com rede de suporte familiar e institucional, ainda assim há um outro fator: socialmente ela não vai se achar boa mãe se decidir continuar produzindo”, exemplifica.

Mesmo com um cenário difícil de ser enfrentado, ela acredita que há um futuro promissor pela frente. Celebrar institucionalmente o 11 de fevereiro e promover ações que busquem essa igualdade é um caminho potencialmente beneficiado e estimulado por uma nova geração de meninas e mulheres preocupadas e atentas à temática. “Temos que parar para refletir. Meninas da iniciação científica já vêm com uma garra e positividade boa. Muitas são engajadas e querem um futuro científico melhor. A força dos jovens pode dar um passo além”, pondera.

Ela também acredita que todas as sensações que vêm sendo compartilhadas por mulheres em reuniões e espaços coletivos podem ser determinantes para que gotas d`água façam a diferença e inundem um copo que parecia vazio. “Penso que teremos uma história bonita para contar nos próximos 11 de fevereiro, com números diferentes, pois essa é uma necessidade emergente”.

 

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Amanda Miranda/Agecom/UFSC

Tags: Meninas e Mulheres na Ciência